terça-feira, 15 de agosto de 2017

Uma olhada para trás no deserto


E te lembrarás de todo o caminho, pelo qual o Senhor teu Deus te guiou no deserto estes quarenta anos, para te humilhar, e te provar, para saber o que estava no teu coração, se guardarias os seus mandamentos, ou não. Deuteronômio 8:2

Nunca se envelheceu a tua roupa sobre ti, nem se inchou o teu pé nestes quarenta anos. (Deut. 8:4)

Nada faltou durante estes quarenta anos. Que graça maravilhosa brilha nessas palavras! Pense-se em Javé cuidando do Seu Povo, de maneira que os seus vestidos se não envelhecessem e se não inchassem os seus pés! Não somente os alimentou, mas vestiu-os e cuidou deles de todas as maneiras. Até Se debruçou para cuidar dos seus pés, para que a areia do deserto os não pudesse magoar! Assim, por quarenta anos, velou por eles com toda a delicada ternura do coração de um pai. O que não empreenderá o amor em favor do objeto amado? O Senhor amava o Seu povo e este bendito fato assegurava tudo em seu favor, se apenas o tivessem compreendido. Não havia uma única coisa dentro dos limites das necessidades de Israel, desde o Egito a Canaã, que não tivesse assegurada para eles e incluída no fato de que o Senhor havia proposto realizá-la por eles. Com amor infinito e poder onipotente a sua favor, que poderia faltar-lhes?

Mas, como sabemos, o amor reveste-se de várias formas. Tem mais alguma coisa a fazer do que prover alimento e vestuário para o objeto amado. Não só tem de atender às suas necessidades físicas, mas também às necessidades morais e espirituais. O legislador não deixa de recordar isto ao povo. "Confessa, pois", diz ele, "no teu coração que" — a única maneira verdadeira e eficaz de considerar —"como um homem castiga o seu filho, assim te castiga o SENHOR, teu Deus." Ora nós não gostamos de ser castigados; não é agradável, mas doloroso. 

Está tudo muito bem quando um filho recebe alimento e vestuário da mão de seu pai, e todas as suas necessidades são satisfeitas pelo cuidadoso amor de seu pai; mas não lhe agrada ver o pai pegar na vara. E, todavia, essa temida vara pode ser a coisa mais conveniente para o filho; pode ser para ele o que os benefícios materiais ou o bem-estar terreno não podem conseguir; pode corrigir qualquer mau hábito ou livrá-lo de alguma má inclinação, ou salvá-lo de alguma má influência, e ser assim uma grande bênção moral e espiritual pela qual ele terá de ser agradecido para sempre. O ponto importante para o filho é ver o amor e cuidado do pai na disciplina e castigo tão claramente como nos diversos benefícios materiais que são espalhados pelo seu caminho, dia a dia.

É aqui precisamente onde nós falhamos muito a respeito dos atos disciplinares de nosso Pai. Regozijamo-nos com os Seus benefícios e bênçãos; estamos cheios de louvor e gratidão à medida que recebemos, dia a dia, da Sua mão liberal, o rico suprimento de todas as nossas necessidades; deleitamo-nos em meditar sobre as Suas maravilhosas intervenções a nosso favor em tempos de aperto e dificuldade; é um precioso exercício volver os olhos para o caminho pelo qual a Sua benigna mão nos tem conduzido, e marcar os "Ebenezeres"* que nos falam do precioso auxílio que nos tem dado ao longo de todo o caminho.

Tudo isto é muito bom, muito justo e precioso; mas então existe o grande perigo de descansarmos nas misericórdias, nas bênçãos e benefícios que emanam, em tão rica profusão, do coração amantíssimo de nosso Pai e da Sua bondosa mão. Estamos dispostos a descansar nestas coisas e a dizer como o salmista: "Eu dizia na minha prosperidade: Não vacilarei jamais. Tu, SENHOR, pelo teu favor fizeste forte a minha montanha" (SI 30:6-7). Verdade é que é "pelo teu favor", mas, contudo somos propensos a estar ocupados com a nossa montanha e a nossa prosperidade; permitimos que estas coisas se interponham entre os nossos corações e o Senhor e deste modo convertem-se numa cilada para nós. Daí a necessidade de castigo.

Nosso Pai em seu fiel amor e cuidado vela por nós; vê o perigo e manda a provação, de uma ou outra forma. Pode vir um telegrama a comunicar a morte de um filho querido, ou a queda de um banco envolvendo a perda de todos os nossos interesses terrenos. Ou pode suceder estarmos de cama com dores e enfermidade, ou obrigados a velar junto do leito de um enfermo querido. Em suma, somos obrigados a atravessar águas profundas que parecem ao nosso pobre e covarde coração, absolutamente esmagadoras. 
O inimigo sugere a pergunta: "É isto amor?" A fé responde, sem hesitação e sem reserva: "Sim!" É tudo amor, perfeito amor; a morte da criança, a perda da fazenda, a enfermidade triste, lenta e penosa, toda a dor, toda a ansiedade, as águas profundas e as negras sombras — tudo, tudo é amor — perfeito amor e infalível sabedoria. 

Estou seguro disso, até mesmo neste momento; não espero até o saber mais tarde, quando, desde a plena luz da glória, volverei os olhos para todo o caminho; sei-o agora mesmo, e alegro-me em reconhecê-lo para louvor daquela graça infinita que me tirou do profundo da minha ruína, e se encarregou de tudo que me diz respeito, e que se digna ocupar-se das minhas falhas, loucuras e pecados, a fim de me livrar deles, para me fazer participante da santidade divina e conforme a imagem d'Aquele bendito Senhor que "me amou e se entregou a si mesmo por mim". Leitor cristão, este é o modo de responder a Satanás e aplacar os escuros argumentos que possam surgir em nossos corações. Devemos justificar sempre Deus. Devemos encarar os Seus atos judiciários à luz do Seu amor. "Confessa, pois no teu coração que, como um homem castiga a seu filho, assim te castiga o SENHOR". Certamente, não nos queremos ver sem a bendita garantia e prova de filiação.

“Filho meu, não desprezes a correção do Senhor, e não desmaies quando, por ele, fores repreendido; porque o Senhor corrige o que ama, e açoita a qualquer que recebe por filho. Se suportais a correção, Deus vos trata como filhos; porque que filho há a quem o pai não corrija? Mas, se estais sem disciplina, da qual todos são feitos participantes, sois, então, bastardos e não filhos. Além do que, tivemos nossos pais segundo a carne, para nos corrigirem, e nós os reverenciamos; não nos sujeitaremos muito mais ao Pai dos espíritos, para vivermos? Porque aqueles, na verdade, por um pouco de tempo, nos corrigiam como bem lhes parecia; mas este, para nosso proveito, para sermos participantes da sua santidade. E, na verdade, toda correção, ao presente, não parece ser de gozo, senão de tristeza, mas, depois, produz um fruto pacífico de justiça nos exercitados por ela. Portanto, tornai a levantar as mãos cansadas e os joelhos desconjuntados, e fazei veredas direitas para os vossos pés, para que o que manqueja se não desvie inteiramente; antes, seja sarado" (Hb 12:5-13).

É, ao mesmo tempo, interessante e proveitoso notar a maneira como Moisés insta com a congregação para que não esqueça os diversos motivos de obediência no passado, no presente e no futuro. Tudo é apresentado com o fim de avivar e profundar o seu sentido dos direitos do Senhor sobre eles. Deviam recordar o passado, considerar o presente, e antecipar o futuro; e tudo isto devia atuar sobre os seus corações, e guiá-los em santa obediência Aquele bendito Senhor que havia feito, estava fazendo e ainda havia de fazer tão grandes coisas por eles. O leitor atento dificilmente pode deixar de observar nesta constante exposição de motivos morais uma característica especial deste encantador livro de Deuteronômio e uma notável prova de que não se trata de intentar uma repetição do que temos em Êxodo; mas, pelo contrário, de que o nosso livro tem um alcance, um fim e um desígnio inteiramente próprios. Falar de mera repetição é absurdo; falar de contradição é irreverente.

"E guarda os mandamentos do SENHOR, teu Deus, para o temeres e andar nos seus caminhos." A partícula "e" tem força retrospectiva e prospectiva. Era destinada a guiar o coração sobre os atos do Senhor no passado e a apontar-lhe o futuro. Deviam pensar na maravilhosa história desses quarenta anos no deserto: o ensino, a humilhação, a provação, o cuidado vigilante, o ministério gracioso, o amplo suprimento de todas as suas necessidades, o maná do céu, a corrente da rocha ferida pela vara, o cuidado dos seus vestidos e dos seus pés, a disciplina salutar para o seu bem moral. Que poderosos motivos morais estavam aqui para a obediência de Israel! Mas isto não era tudo; deviam olhar também para o futuro; deviam antecipar a brilhante perspectiva que estava diante deles; deviam achar no futuro, assim como no passado e no presente, a base sólida dos direitos do Senhor sobre a sua reverente e sincera obediência.

Porque o Senhor teu Deus te põe numa boa terra, terra de ribeiros de águas, de fontes, e de mananciais, que saem dos vales e das montanhas;
Terra de trigo e cevada, e de vides e figueiras, e romeiras; terra de oliveiras, de azeite e mel.
Terra em que comerás o pão sem escassez, e nada te faltará nela; terra cujas pedras são ferro, e de cujos montes tu cavarás o cobre. Deuteronômio 8:7-9


Autor: C. H. Mackintosh, extraído dos estudos sobre o livro de Deuteronômio.

*Ebenézer significa pedra da ajuda, ou gratidão, é um termo em hebraico. Pedra erguida pelo profeta Samuel para comemorar a vitória em um lugar onde tinham sido derrotados anteriormente.